Arredores
Estava por atravessar a catraca quando viu, a tempo para deter o passo, os cartazes e os avisos eletrônicos que anunciavam os problemas na linha. Pelo que se via, tinha acabado de acontecer. Um colega do financeiro havia aconselhado, algumas semanas atrás, que ela sempre verificasse o status da operação antes de ir embora, uma indicação que tinha ignorado, não por esquecimento: parecia um excesso o ato de assegurar-se, todos os dias, de que a cidade continuava funcionando. Ainda não tinha entendido, como nos meses seguintes, a facilidade com que eventos corriqueiros pareciam sair do controle. Pôde ver, desde os primeiros incidentes, como a multidão retornava do subterrâneo depois de desistir de ingressar, como era devolvida à superfície e se espalhava em movimentos errantes pelo largo em frente à estação. Pensava que não aconteceria mais, mas nesse dia sentiu de novo a palpitação ao perceber toda aquela movimentação ao seu redor. Em pouco tempo, o corte já reverberava nas pequenas bancas de comida, sempre à espera de momentos assim às margens das paradas. Recebiam com entusiasmo a fome que teria se espalhado para outras direções e que pedia para ser saciada ali. No ar, misturava-se o vapor do milho verde, o odor oleoso dos pastéis e das pipocas que, de pronto, eram reaquecidas.
Esse era mais um daqueles fenômenos que observava com o assombro de quem testemunha uma convulsão, um sismo. Via como o fim do dia no Bom Retiro era decretado de súbito, o fechamento conjunto das pálpebras de metal que guardavam as lojas, as ruas que se esvaziavam em uma rapidez fascinante. Parecia, depois disso, que se sentia ainda mais o frio, que chegava sempre sem muito aviso naqueles meses. As ruas, antes porosas das aberturas dos comércios, com o fluxo arrastado por entre os vendedores ambulantes, se tornavam corredores pelos quais o vento soprava ainda mais forte, e o cair da noite em São Paulo parecia, para ela, sempre adiantado. Esperava que o dia demorasse um pouco mais para se despedir, que se arrastasse. Pensou que se acostumaria, mas a estranheza parecia persistente, se renovava. O tempo separaria aquilo que seria capaz de assimilar, aquilo que rejeitaria com uma renitência misteriosa. Naquele momento, isso era ainda indistinguível, confuso.
Aquela região, à noite, tomava outros contornos, muito rapidamente mostrava seu avesso, se adensavam suas zonas escuras. Ainda não sabia a que recorrer. O ônibus a levaria a lugares desconhecidos, muito provavelmente lúgubres, antes de atingir um local seguro para retomar a rota — chamar um táxi estava fora de cogitação. Sentia-se presa para o lado de fora. Deambulou alguns metros, sentou-se em um canto de um dos bancos que encontrou livre, já mais afastado do largo e, muito rápido, constatou que era melhor manter-se em movimento e buscar outro lugar. Nas esquinas mais próximas, em locais tão típicos que brotavam nos cruzamentos da cidade, um torpor de cansaço e alegria: o aroma de comida, a batida de uma música tinham atraído muitos, que se aglomeravam dentro e fora dos bares. A contenção gerada no corpo pela jornada era rompida quase com violência, entre copos de cerveja e, eventualmente, uma dança de improviso entre as mesas. Entrar naquela atmosfera seria permanecer no alvoroço, nada ali se parecia com um abrigo.
Não restava senão adentrar-se no bairro, a contracorrente dos restantes que apenas agora deixavam os comércios, atrasados por um cliente de última hora, uma intercorrência no fechamento do caixa, e ainda marchavam acreditando que escoariam para suas casas em normalidade. Confiava em certo faro, pensava já ter aprendido por onde circular, como evitar convenientemente imóveis tomados, territórios arriscados, um trajeto que delineou em meses de erros e acertos. Muitos jamais escolheriam essa rota noturna, sempre o consabido medo do centro, da sujeira, das pessoas nas ruas. Tantas vezes a instruíram sobre o caminho, andar reto, velozmente, que acabou por criar em si mesma uma instância que a fazia evitar a distração e, ainda que não sentisse mais o medo, a vigilância se internalizava, tomava o comando, impunha o ritmo.
Não sem flertar com o arrependimento, sem acelerar e diminuir o passo umas tantas vezes, encontrou o restaurante, anunciado por um pequeno neon em uma porta grande e escura — tinha passado por ali, semanas atrás, mas teve agora que tatear o caminho, já que a noite apagava alguns pontos de referências do dia. Entrou com algo de receio, ainda, e recebeu em silêncio, na mesa já posta, o cardápio em caracteres hangul. O atendente chamou alguém em seu auxílio, talvez quem acumulasse as funções de faxineiro, cozinheiro, gerente, e muito provavelmente, se chamasse Seong-ho ou Yeong-su. Próximo da mesa, de forma gentil, como quem se desculpava, dizia “não tem português” e em seguida, repassando as fotos do cardápio, com um sorriso convidativo: “sopa, bom, carne!”. As imagens eram poucas, algumas bastante desfocadas: um caldo que fumegava, ervas em ramos inteiros, como se tivessem sido adicionadas da mesma forma como foram colhidas, massas em fios longos, vasilhas de conteúdo desconhecido. Ouvia-se, vindo de outras mesas, o som das conversas em língua estrangeira. Era curioso pensar onde tinham estado essas pessoas o tempo todo — talvez atrás de balcões, em galerias onde ela não tinha tido ainda tempo de circular.
Fez seu pedido ao acaso, apontando o dedo como faria uma criança, e atrás de uma porta de correr envidraçada alguém iniciava um preparo: podia entrever as tigelas negras que eram preenchidas rapidamente. Enquanto esperava pela comida, pensou que vender roupas, afinal, não era tão ruim e, além de tudo, não era para sempre. Agora já não corrigiam mais a forma como ela dobrava as pilhas de calças e camisetas; de fato, havia adquirido uma prática que era antes impensável até para ela mesma, e também era verdade que tinha conquistado a confiança das pessoas. Havia também os momentos que ela aprendeu a cultivar, como se escava, em qualquer lugar, um esconderijo. No andar superior, fechada no estoque, onde os tecidos a isolavam, faziam com que tudo ficasse para trás, abafavam a voz dos compradores, as conversas dos colegas, o ruído da rua (como, quando pequena, tinha aprendido a se acomodar no interior do guarda-roupas). Naquele silêncio, conseguia um descanso ativo: via apenas as linhas, as blusas, calças e casacos dos quais refazia a dobra, desmanchava os vincos e, com cuidado, dava uma nova postura. Olhava os contornos que as peças empilhadas formavam com uma satisfação que, tempos atrás, sentia ao terminar alguns dos seus desenhos. Tudo é como um projeto, se consolava. Amanhã, troco a vitrine. Sentia-se ainda uma estudante de arquitetura, não considerava a interrupção uma desistência, mas uma pausa — uma amiga tinha definido a situação assim, uma vez, há algum tempo atrás, e trazer essa frase à lembrança sempre lhe trazia alívio. Pensou também que, apesar do desvio de hoje, ainda daria tempo de passar no mercado e, com sorte, prepararia comida para o dia seguinte quando chegasse, enfim, em casa. Pelo menos estava na superfície, pior seria ter terminado presa no vagão, sentir-se sufocada. Lembrou-se de uma vez, não muito tempo atrás, quando por distração subiu as escadas rolantes no sentido contrário. A princípio, pareceu fácil corrigir e tentou caminhar sempre mais, sempre mais, imprimindo uma velocidade que não só cobrisse o movimento contrário mas o superasse — às vezes, era isso que fazia ali, andava contra um obstáculo que a empurrava para trás, obrigada a pôr uma grande força para avançar pouco. Sorvia o caldo e os fios da massa, e não demorou para que sentisse o efeito da pimenta. Corou muito rapidamente, sentiu quase uma vertigem. O atendente, satisfeito, parecia aliviado por ter conseguido alimentá-la. Reafirmou, como quem busca acalmar, ainda sorrindo, “bom, faz bem!”.
Voltou para a estação cruzando novamente as ruas escuras e agora completamente vazias, reconheceu os pontos onde ancorou a memória, saltou para as luzes dos pequenos comércios noturnos que exalavam cheiro de acelga, de peixe e de cogumelos, reencontrou os bares com os ânimos já aplacados. Era enorme a ausência, e algumas quadras antes de chegar, com confiança, se deteve por um momento. Conseguiu ter diante dos olhos, como nunca antes, aqueles contornos: viu o perfil de alguns prédios antigos de certo trecho da rua Três Rios, os ângulos das esquinas, o acenar no horizonte das pontas de prédios monumentais. Agora que tinha visto que o bairro era assim, mesmo sob a luz do dia, atrás da fumaça e do tremor do movimento, saberia que em uma outra lâmina sempre estaria lá, em decalque, essa quietude escura e geométrica.
No interior do vagão, algumas pessoas que tinham estado presas no bloqueio disseram que de novo alguém tinha se jogado, que o código para isso era objeto na via. Um corpo por entre os trilhos comovia, mas já não havia espaço para a comoção, para imaginar motivos, para forjar uma tristeza virtual e de última hora — a ideia não ocupou os pensamentos por muito tempo, ninguém tinha já muito para dar. A campainha anunciou a chegada ao entrecruzamento, a praça-túnel onde muitos deveriam trocar de linha. Agora, os restantes, como um grupo disperso que enfim se reconhece, tentavam respirar mais o ar que o sistema de ventilação devolvia pesado e quente.
Cruzando a cidade de ponta a ponta, recostou-se no seu lugar e, quase sem dar por isso, adormeceu para alguns minutos de sono subterrâneo. Mesmo de dia, o espaço do metrô era para ela um território da noite: hoje, mais do que nunca, sentia sua profundeza. Era muito raro quando conseguia conter o sono, a mente se entregava a ele como o corpo é levado, túnel adentro, pelos interiores da cidade — gostava disso, de abandonar-se àquele fluxo, de não fazer nada mais senão ir. O curso veloz do trem acelerava o sonho, feito todo de recortes que se embaralhavam, tentavam se acomodar, repousar em um centro de gravidade. Acordou, sobressaltada, muito perto da estação em que deveria descer. Recolheu sua bolsa, conferindo se tudo tinha se mantido ali e, na tentativa de recobrar a vigília, constatou que tinha ainda nos lábios um sabor de pimenta. Dessa vez, deixou-se levar pela escada, que a devolveu para o alto do seu bairro, na boca de uma noite úmida e conhecida. ⧫